Bem-Vindo Errante Viajante

Do Olimpo trago a almejada chama, da qual sugiro dançarmos embriagados a sua volta, e quando assim for, sujiro arriscar tocá-la, pois, felizes os que dela se queimarem.

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

RPG: Aventuras em Yrth - Saga dos Bravos de Orion - João de Deus - Parte I


João de Deus, O Infausto Embusteiro.
Natural do Reino de Caithness (Continente de Ytarria).
Nascido sobre o signo de Áries
Ofício: Ladrão/Mercenário


Prólogo de um Herói

Ilustração 01
Outrora este era Nárccio Narcellus de Denton,
que futuramente seria conhecido por toda Ytarria,
 como “João de Deus”, O Infausto Embusteiro.
Nárccio era o filho caçula de uma família de miseráveis camponeses que vivia no condado de Simonton (Reino de Caithnness) nas proximidades da fronteira entre o reino de Caithness, o Grande Deserto e a Grande Floresta.

Poucos anos após o nascimento de Nárccio, o Conde Walton de Simonton nada satisfeito com os tributos recolhidos de seu povo e os recorrentes assaltos as suas caravanas mercantis que percorriam o Rio Smoke, resolveu baixar um decreto nas quais todas as famílias que estavam a viver em seus domínios deveriam lhe prestar uma singela homenagem como desculpas pela incompetência de sua produção e o desagrado ao seu senhorio. E, essa oferta a maior era a entrega de seus filhos homens.

Era sabido pela mãe de Nárccio, que trabalhava dentro do palacete do Conde, que o mesmo não tinha boas intenções com os filhos. Pois, eram frequentes os rumores entre os servos de que Walton molestava com violência sexual os mais novos. Tendo muitos dos corpos desses inocentes jogados ao canil como alimento aos cães de sua guarda, assim como também a transação comercial dos sobreviventes e dos mais velhos como escravos para alguns nobres dos baronatos vizinhos de Denton e Ferrier.

Antes que os soldados deixassem o palácio do Conde a fim de cumprirem a ordem superior que lhes foi delegada, Mayrah partiu ao encontro de seu esposo, Joan Narcellus, para lhe dizer que restava pouquíssimo tempo até que os meninos fossem lhes tirados do braço para uma atrocidade maior, e, que, portanto, se fossem fazer algo eles não deveriam tardar mais.

Joan Narcellus conseguiu uma montaria, alguns mantimentos, e, antes que deixasse furtivamente o condado, ele foi abordado por João de Aggorá – uma pessoa a qual Joan nutria grande respeito e admiração, pois sempre viu nele um amigo -, e em soluços este homem aparentemente forte, o suplicou:

- Joan não sei para onde levarás o seu pequenino, mas bem sei que é para buscar algo melhor do que estes muros podem ofertar, portanto, não me falte nessa hora, meu amigo, pois, sei que não tardará para que o Conde e seus vassalos venham requerer a minha pequena Galiul, que no próximo ano estará a completar treze primaveras. Por favor, eu lhe imploro. – João se pôs de joelhos com lágrimas nos olhos e agarrados a calça de Joan.

Joan, comovido por tal gesto, prontamente colocou o amigo de pé, e aceitou sem pestanejar o seu apelo que lhe fizeram marejar os olhos.

Antes que amanhecesse por completo, Joan partiu acompanhado de seu filho e da filha de João. Ele tinha conhecimento de que o local mais seguro a se seguir seria em direção a cidade de Nova Jerusalém no reino de Mégalos fazendo o percurso às margens do Rio Smoke, contudo, sabia também que a rota não era fácil. Pois, o mesmo já havia feito este trajeto em outros momentos na condição de carroceiro mercante, e por várias vezes o grupo em que esteve foi abordado por ladinos errantes.

Joan se esforçava ao máximo para não denunciar a passagem deles, contudo, ele não havia sido treinado para aquela tarefa, e para aqueles que já estavam na rota ha muito tempo, e, sobreviviam de atos sórdidos e ilícitos, não tardou para que houvesse os primeiros encontros. Em menos de cinco dias de cavalgada ele e as crianças conseguiram escapar de duas abordagens diretas, mas, no décimo terceiro dia os três foram apanhados de surpresa por um grupo de cinco goblins e três cães liderados por um meio-orc. Ele só teve tempo suficiente para montar as crianças no cavalo e dar ordem para que seguissem direto, enquanto ele enfrentava corajosamente munido apenas de sua espada curta aqueles hostis ladinos.

Desde a partida de Simonton até aquele momento crucial de separação, Galiul (12 anos) já se sentia a cerca de pouco mais de uma semana como se fosse a mãe do pequeno Nárccio (3 anos) tomando para si a responsabilidade de cuidar dos dois.

Galiul fez como Joan havia lhe dito: seguiram com cautela pelo caminho as margens do Rio Smoke, sempre tentando se afastar ou se esconder de grupos e possíveis criaturas que se aproximassem, até que alcançaram a pequena cidadela de Donlis, desprovidos do alazão em função do mesmo ter adoecido devido ao esforço da jornada. Antes de se separarem, o pai de Nárccio ainda a orientou de que quando chegassem ao próximo povoado deveriam se dirigir rapidamente a Casa de Deus, e pedir acolhimento ao santo padre, e, lá aguardassem pela chegada dele. Contudo, caso ele demorasse em aparecer, deveriam os dois pedir ao padre que os encaminhassem com segurança para a cidade de Nova Jerusalém em Mégalos a um lugar chamado Casa das Crianças de São Miguel (Doce Lar dos Órfãos de São Miguel Arcanjo).


O Fitar Fascinante das Chamas

Ilustração 02
O Clérigo Dom Clemêncio Gárdio
 da Igreja de São Clementino da Luz em Donlis.
Na cidadela de Donlis, Galiul e Nárccio seguiram para Casa de Deus - a Igreja de São Clementino da Luz -, onde foram acolhidos por um monge chamado Dom Clemêncio Gárdio. Nessa igreja havia outras dez crianças, mas elas aparentemente não eram felizes, e, não tardaria para que os dois novatos descobrissem os motivos dessa infelicidade.

Dom Clemêncio, era um homem temido pelo conhecimento que detinha das pessoas, e de como os dominava, por meio de uma língua afiada que rivalizava com a do próprio diabo. Conseguia com facilidade obter daqueles que o procuravam os seus segredos mais profundos, tornando-se assim, servos incondicionados. Pouquíssimos se arriscavam a desafiá-lo, e, quando o faziam eram sentenciados a morte pelos demais populares. Dono de uma fortuna e uma quantidade de terras considerável, ele vivia uma vida muito diferente de um monge religioso, pelo contrário, vivia em constante pecado. Tinha muitos filhos dentre as camponesas, molestava crianças, jogava compulsivamente, cometia assassínios, e, embriagava-se com certa frequência.

Dias se passaram, assim como semanas e meses, e nada de Joan surgir para leva-los embora daquele lugar. E antes que Galiul e Nárccio pudessem escapar das garras de Dom Clemêncio, eles foram rebatizados como Maria e João de Deus, pois era dessa maneira arrogante que o monge se referia a todos os seus filhos bastardos que viviam debaixo do mesmo teto. Todos aqueles que o desafiavam eram duramente açoitados, humilhados e repreendidos.

Bem antes de Galiul completar as suas treze primaveras, ela ganhou de presente de Don Clemêncio a sua primeira e agourenta relação sexual. Nárccio não sabia ao certo o que se sucedia por não estar nas mesmas dependências de sua amiga, mas chorou copiosamente ao ouvi-la em prantos, os seus gritos de dor que ecoavam pelas paredes daquele lugar abominável, e onde por entre as fretas só lhe era permitido ver as indecifráveis e vultosas sombras que se moviam assombrosamente ao dançar das chamas nas tochas presas a parede do cômodo enquanto o horrendo ato era consumado.

Ilustração 03
Galiul de Aggorá “Maria de Deus”,
 amiga e responsável pela vida de Nárccio.
Horas se passaram até que Galiul foi levada desacordada para junto das demais crianças. A sua roupa era uma vestimenta em trapos que mal a cobria, sua pele havia sido açoitada, e, entre as suas pernas corria uma sangria descomunal. A mulher mais velha que a trouxe em seus braços disse fitando Nárccio nos olhos:

- Cuidem vocês dela, crianças imundas, e, logo, antes que ela morra pela displicência de vocês! Tenham a certeza de que se isso ocorrer o pai não será tão generoso!!!

Todos aquelas sofridas e estranhas crianças se mobilizaram para tentar cuidar de Galiul, dos mais novos aos mais velhos. Nárccio, como ainda era muito pequeno estava sob os cuidados de uma criança mais velha, e juntos assistiam a recuperação da outra que se manteve desacordada por dias sobre a cama, até que acordou durante a noite em um acesso de febre e delírios que assustou a todos. Naquela mesma madrugada, a menina foi levada por um carroceiro a pedido do monge para um lugar desconhecido onde seria medicada e tratada.

Semanas se passaram até que Galiul retornasse a Igreja de São Clementino da Luz. O olhar da menina estava disperso no infinito, o andar desajeitado e amedrontado, somente reencontrou firmeza e direção quando pôde ter Nárccio nos braços. Todas as demais crianças a abraçaram calorosamente. O retorno dela também foi apreciado por Dom Clemêncio que três noites depois de sua volta, exigiu-a novamente em seus aposentos, revezando ela com outras cinco desafortunadas meninas.

Uma das meninas mais velhas que durante muito tempo tramava as escondidas uma vingança contra o monge, convidou Galiul a fazer parte de um plano mortal, algo do qual ela não hesitou fazer parte em compor. Quase um ano se passou após essa decisão. Até que em uma noite de inverno algo triunfal aconteceu...

Todo o grupo de revoltados se reuniu em uma árdua e perigosa tarefa que consistiu em dominar os domínios do clérigo. Primeiramente, as meninas se insinuaram para os capangas, e, quando estes seduzidos se distraíram afoitos em possuí-las, eles foram repentinamente desacordados por pancadas certeiras na parte de trás da cabeça. Depois, seguiram se as mulheres mais velhas que viviam com o monge, e que foram dopadas com ervas e amordaçadas junto as colunas do cômodo que era a dispensa. Por último, e, não menos importante, o grande algoz – Dom Clemêncio -, que também foi seduzido, embriagado, preso com grossas cordas, e posto de costas com as suas pernas arqueadas em seu leito de modo que pudesse sentir por meio de seu orifício anal toda a dor que ele promoveu em anos aos seus inúmeros filhos bastardos... Nem todos preferiram ficar até o término do espetáculo, aproveitaram o momento para se evadir do lugar (era madrugada). Contudo, Galiul não se sentiria realizada se partisse antes da consumação de todo o plano. Ela ajudou a espalhar os tecidos rasgados, a quebrar os móveis de madeira e jorrar o óleo inflamável sobre as peças.

Enquanto a igreja e o casarão anexo eram consumidos rapidamente pelo fogo que se alastrava facilmente, as crianças afugentadas e felizes corriam pelas ruas de Donlis, e, alguns dos moradores que moravam ali próximo, embora demonstrassem espanto com o tamanho das labaredas que rasgavam o céu, nada fizeram para tentar impedir aquele incêndio, como se aquele evento já fosse durante muito tempo ansiado. As duas crianças assistiam concentradas aquele espetáculo de ardência. Nárccio olhava para as chamas como se estivesse hipnotizado, e, isso de certa forma também se multiplicava no olhar de Galiul, que falou quebrando aquele relativo silêncio somente abalado pelo barulho do desabar das estruturas e dos gritos quase inaudíveis oriundos do interior daquele lugar que um dia fora a morada deles:

- Nós temos que amar as chamas, João, pois, elas consomem tudo, inclusive a dor das lembranças.


Em busca de um novo começo

Após o episódio do incêndio da igreja, as crianças de São Clementino da Luz foram convidadas pelos moradores da cidadela de Donlis a se retirarem o mais breve possível, antes que alguém viesse reivindicar vingança ou apurar os fatos. Os populares inclusive custearam uma passagem de barcaça através do Rio Smoke para além das fronteiras de Caithness.

Desde o incidente do primeiro estupro, Galiul nunca mais foi a mesma, tanto que ela se esquecera de seu nome – ou preferiu não mais lembra-lo -, referindo-se a si mesma como Maria de Deus, e, assim também o fez com Nárccio, a quem passou a chamar de João de Deus. Desde o seu retorno ao casarão, eram frequentes os pesadelos ao longo da noite, nos quais acordava muito assustada e choramingava a tragédia vivida. João não entendia a enfermidade que a sua amiga vivia, mas sabia que o seu abraço em muito a confortava. Os dois só tinham um ao outro, e, por tal motivo, ela o defendia com unhas e dentes, mesmo quando ele estava errado.

Na viagem pelo Rio Smoke, João e Maria conheceram Jammes Debberus, um homem de aparência misteriosa, que fazia uso de um tapa olho na vista esquerda, cuja habilidade especial dele era se misturar em meio a multidão de maneira a se fazer desapercebido, e que ao longo de todo trajeto se aproveitou de tal artifício para saquear um a um daqueles passageiros que usufruíam do transporte fluvial. Assim, que esse misterioso ladino foi abordado e inquirido por Maria, ele se sentiu ameaçado e compelido a sair imediatamente daquele lugar, antes que algo de pior lhe ocorresse. No dia seguinte, Jammes evitou perambular pelo convés da barcaça abrigando-se em um esconderijo improvisado, e, assim se manteve ao longo de quatro dias. No entanto, quando a sua compulsão em roubar apitou estrondosamente em sua mente, ele sai desesperadamente daquele fétido cubículo, porém, as duas crianças já o aguardavam para seu desconforto total. Nervoso e fora de si, ele tomou os dois pelos braços, e, caminhando em passos acelerados os carregou em direção ao fundo da barcaça disposto a arremessa-los no rio. Eis que nesse momento, a menina começou a gritar de maneira estridente e incessante por:

- Papai! Papai! Papai! Por favor, não nos bata! Prometemos não fazer mais nenhum tipo de mau criação... – Maria, esperneava e batia os pés enquanto era puxada firmemente pelo braço.

João ao ver aquilo, também começou a imitar a sua irmã. E, logo os três atraíram a atenção de alguns tripulantes que logo se aproximaram para averiguarem o que se passava. Jammes se viu totalmente acuado com vários olhares pousados sobre ele... Isso o deixou atônito e trêmulo. Maria ao perceber o que a sua ação desencadeou naquele homem esguio e estranho, rapidamente simulou uma espécie de perdão, abraçando-o.

Ilustração 04
Jammes Debberus, O Ladino de Face Enigmática.
As pessoas com o tempo dispersaram os olhares dos três. Porém, para Jammes o seu trabalho naquela barcaça havia se encerrado, uma vez que seu rosto tornara-se conhecido. Desolado ele foi para um canto, e lá ficou a esperar até que a embarcação atracasse no próximo cais para descer. João e Maria a partir daquele momento o seguiram por todos os lados, mantendo-se próximos a ele. Por mais que em sua mente lhe ocorresse à possibilidade de assassinar aquelas duas criaturas peçonhentas que arruinaram o seu trabalho de meses, este era um ladino incapaz de matar alguém, a não ser que este último o colocasse em uma situação de extrema tensão.

A alguns dias de viagem da cidade de Craine, Jammes desceu no cais de um grande vilarejo, e, como senão bastasse, João e Maria o acompanharam sem o seu consentimento. Ele entrou em uma estalagem, pediu um quarto, e, do alto na janela frequentemente passava o olhar observando os dois que montaram guarda em frente ao local onde se alojou. Aquilo o deixou bastante agoniado, e tinha que arranjar uma maneira de se desvencilhar deles antes que arruinassem a sua vida.

Durante oito dias Maria e João ficaram próximos a estalagem, mendigando refeições na rua, dormindo ao relento e tentando observar o seu alvo, sem perder o foco. Contudo, no término do último dia, quando o dono do local foi abordado por Maria em prantos avisando que aquele homem era o pai desnaturado deles que durante muito tempo estava fugido de casa, o senhorio da hospedaria comovido falou que aquele viajante havia pago por dois dias, mas que, no final do primeiro já havia partido sem deixar rastros, Maria ficou pasma e desnorteada com aquela informação.

Hilda Noir, uma belíssima mulher que estava de passagem naquele vilarejo, e de partida da hospedaria naquele momento não pôde deixar de ouvir a história contada por Maria para o Senhorio do lugar, e, sobretudo, como a pequena havia ficado assombrada com a notícia de que o pai mais uma vez tinha abandonado a eles. Ela esperou ficar a sós com os dois para oferecer uma oportunidade de vida:

- Jovem, desculpe minha intromissão – retirando um lenço da bolsa e enxugando as lágrimas da face de Maria -, mas não pude deixar de ouvir a triste história de sua família. Confesso que em muito me tocou, pois, também se assemelha a minha própria que ainda muito cedo também me tornará órfã. Vejo que você e o seu irmão não parecem ter muita coisa além das vestimentas em frangalhos que trajam, sendo assim, gostaria de lhes pagar uma refeição e aproveitar o momento para conversarmos sobre a possibilidade de mudarem de vida.

Embora Maria se sentisse receosa em aceitar o convite de Hilda, ela estava com muita fome, e, ficou ainda mais compelida em fazê-lo pela vida de João. À medida que os dois irmãos se alimentavam, A distinta senhorita aproveitava para contar lhes a história de sua vida, algo tão comovente, agourento e maldito como os dias deles em Donlis, o que fez com que a menina desse crédito para aquela mulher de olhar penetrante e beleza intrigante, ao ponto de se dispor aceitar qual fosse a oportunidade que a mesma tinha a lhes oferecer.

A proposta de Hilda era que Maria se tornasse uma de suas damas em sua morada na cidade de Craine, e o seu irmão enquanto não tivesse idade suficiente para exercer alguma atividade no lugar, ficasse juntamente com as demais crianças filhos de servos do seu lorde. A proposta agradou a Maria, que estava convicta de que aquela mulher tinha o melhor a lhes oferecer.

Quando a carruagem de Hilda Noir correu as ruas em direção à saída do vilarejo, Maria ainda aproveitou para dar uma rápida observada na cidade a fim de avistar o estranho homem que os tinha colocado naquela situação. No entanto, o seu desejo não foi correspondido, e, o seu agradecimento se deu em silêncio, seja lá quem ele fosse.


Dias e Noites sob as Graças de Noir

Ilustração 05
A belíssima Cortesã, Hilda Noir,
 Senhora do Palacete das Orquídeas de Noir.
Em Craine, Maria tomou conhecimento de que ela era mais uma dentre muitas outras jovens garotas que serviam a cortesã Hilda Noir e ao seu consorte, o Marquês Paul Zimmerman. Um grupo formado por cerca de quarenta mulheres que serviam aos interesses lascivos do casal, cujo trabalho delas era propiciar prazer sexual das mais variadas e inimagináveis formas aos convidados da corte. Mais uma vez Maria se viu ludibriada por mentiras e emboscada, pois, nesse contexto, João lhe foi retirado dos seus cuidados e feito refém.

Com o tempo, Maria ficou sabendo que as crianças eram mantidas em um casarão distante da cidade, de propriedade do marquês, e que lá eram aproveitadas para os afazeres domésticos em regime escravocrata. Havia rumores de que as crianças que não se adaptavam a nova vida eram comercializadas. As meninas bonitas e de agrado de Hilda eram trazidas para servirem no palacete, enquanto que os meninos mais leais eram libertos e contratados para servirem a tropa pessoal do marquês, quando não seguiam seu próprio caminho.

Maria tinha receio de que João viesse a saber no que ela havia se tornado, ou ainda, que o mesmo fosse trago para trabalhar naquele lugar – O Palacete das Orquídeas de Noir. Ela não se conformava com aquele tipo de vida, mas não podia demonstrar desagrado, sobretudo, diante de algum convidado, pois, os piores castigos aplicados por Hilda eram voltados contra o seu irmão.

A maioria das meninas que trabalhavam no palacete estava ali em situação semelhante à de Maria. Jovens que foram arrebatadas abruptamente de seus lares ainda muito novas, compradas como escravas para garantir a renda de familiares necessitados, desalmados ou desafetos; meninas que foram seduzidas por estórias de sofrimento e que se transformaram em algo infinitamente melhor; e, jovens que tiveram seus bebes retirados de seus braços e conduzidos a seguir um caminho distante, mas sob a promessa de que o seu esforço entre as quatro paredes do Palacete estaria a garantir a prosperidades de seus amados rebentos. Dependendo do comportamento e da renda propiciada ao longo de um período ao Palacete, os senhorios permitiam as suas servas um dia de reencontro com os familiares próximos, sobretudo, as crianças, contudo, sempre na companhia de um guarda do marquês.

Para não serem abatidas pela depressão, stress e outros infortúnios decorrentes da alma fragilizada, Hilda distribuía entre as suas servas uma poderosa droga alucinógena chamada de Acalanto de Morfeu. E, está foi uma solução adotada por Maria para calar a dor que rompia em seu peito. Pois,ao contrário das crianças da Igreja de São Clementino da Luz, suas novas companheiras não se sentiam tão abatidas por ali estarem condicionadas a escravidão sexual ao ponto de se rebelarem e fugirem, uma vez que, muitas delas antes daquele lugar estavam em situação bem mais precária. O fato é que, muitas delas encontraram no Palacete das Orquídeas de Noir todo o conforto e segurança que talvez nunca sequer almejassem em sonho.


Promessa de Morte

João de Deus tinha um dom empático com os animais surpreendente que o tornou querido entre os seus companheiros, e, todavia, invejado por outros, dentre esses estava Luzmmonarca, um dos filhos bastardos do Marquês Zimmerman e um dos responsáveis pela ordem entre os vassalos que viviam na propriedade.

Ilustração 06
Luzmmonarca, o Algoz de João de Deus
 na fazenda do Marquês Zimmerman,
 além de um filho bastardo deste último.
Luzmmonarca se aproveitava da hiperatividade de João para castigá-lo, e quando o mesmo não dava motivos para tais condenações, o seu carrasco criava situações para fazê-lo. Geralmente, ele o açoitava o torturando psicologicamente com maledicências do tipo:

- Quem pensa que és João do Diabo?!?! Aqui és somente mais um filho desgarrado de uma das rameiras que trabalham e vivem no Palacete Luxurioso de Madame Hilda, prostituindo-se, bebendo e comento do bom e do melhor, enquanto você e todos os outros estão aqui para assegurar a mordomia de mulheres que vivem em pecado e que não percebem o martírio diário para aqueles que estão do outro lado destes muros tenebrosos, distantes, e solitários! Seu verme miserável, aqui sou aquele que lhe permitirá a vida, portanto, respeita-me com o louvor de um servo fiel!

João não entendia algumas das palavras proferidas pelo seu malfeitor, assim como também o motivo de sua revolta para com ele, mas o que mais lhe feria não era a dor produzida pelos açoites incessantes de Luzmmonarca, porém, a distância imposta entre ele e a sua irmã, Maria, cujo desconhecia o paradeiro, senão por aquilo pronunciado pelo seu algoz.

Passado cerca de um ano após a sua chegada a fazenda, João de Deus e um grupo de crianças selecionadas por uma mulher desconhecida foram conduzidos para fora da propriedade onde eram mantidos cativos por meio de algumas carroças em direção a um suntuoso palacete recolhido as margens de uma grande cidade do reino – Craine. Quando lá chegaram, eles foram deixados livres em um pátio interno, obscuro, ricamente adornado com estátuas de mulheres nuas, plantas exóticas, grama verdejante, e, vigiados por pavorosas criaturas que se assemelhavam a homens, mas não eram completamente humanos, por terem como características: cascos nos pés, calda, chifres sobre a testa, focinho e um olhar penetrante.

Quando as crianças ouviram um peculiar ranger de portas, oriundo de um dos lados do pátio, e delas surgirem mulheres pelas quais aguardavam revê-las ansiosamente por infindáveis dias, logo, os pequeninos correram desesperadamente em direção das jovens como se as suas vidas dependessem daquele encontro. João de Deus, quase não reconheceu Maria, pois, suas feições, a silhueta de seu corpo e o seu olhar eram outros – algo havia mudado em sua irmã -, contudo, o olhar e o sorriso da jovem ganharam a forma típica da lembrança quando ela o viu, acolhendo-o em seus braços em um afago longo e choroso.

Daquele dia e das palavras pronunciadas por Maria carregadas de emoção, João de Deus lembrava-se claramente da promessa feita por ela olhando dentro de seus olhos, com os mesmo repletos de lágrima:

- Ainda não sei como nos tirar deste lugar, e longe das garras dessas pessoas, mas prometo que tenho buscado todos os meios possíveis para nos ver livre disso, e voltarmos a ser uma família novamente.

Com um forte abraço, aquele momento e aquelas palavras foram encerradas em um silêncio que perduraria por tempo inimaginável. João de Deus era muito jovem para compreender todas as dificuldades que os envolviam, mas de algo tinha certeza: que gostaria muito de estar ao lado de Maria.

Na fazenda do Marquês Zimmerman, João cresceu sobre um clima que alternava constantemente entre estima, indiferença, respeito, inveja, preconceito, hostilidade, tranquilidade, violência, e batalhas diretas.

Transcorrido cerca de dois anos após o encontro com Maria no distante Palacete na Cidade de Craine, Luzmmonarca, em uma posição destacável, chamou a sua presença João, para encher seus ouvidos com uma infausta mentira que mudaria para sempre a sua vida dentro daqueles muros:

- Morreu já faz uns três dias a sua benfeitora, João, e, acredite, não foi algo tão agradável de se presenciar, pois, ela já agonizava há semanas sob o um leito afastado das demais rameiras, de modo que não contagiasse para as demais companheiras... Dizem que Ela havia sido contaminada por uma doença que somente as mulheres de sua laia poderiam proliferar, alguma coisa que se devia ao fato delas abrirem as pernas para tudo quanto é tipo de criatura que tenha um falo.

Pasmo, João desacreditava insistentemente naquela noticia balançando a cabeça em sentido de negação. Ele estava incrédulo quanto aquelas palavras vindas de seu algoz. Contudo, a farsa também era sustentada por alguns outros que ali estavam, e, Luzmmonarca para reforçar ainda mais aquele estado de choque em sua vitima, empurrou um baú com os pés para próximo de João.

- Aqui estão alguns pertences pessoais dela, cujas companheiras recolheram e guardaram para lhe entregar. Dúvido, verme, que algo lhe sirva, mas se quiser fazer uso, saiba que aqui na fazenda outros entenderam.

João de Deus saiu daquele cubículo em prantos e com o baú de Maria abraçado contra o peito. Ele tinha certeza de que aquele item pertencia a ela, pois, o cheiro que ele exalava lembrava o perfume que ela possuía em seu último encontro, algo que remetia o pensamento a uma delicada flor existente no jardim da marquesa.

Esse tipo de mentira era algo que o Marquês Zimmerman tinha como prática para garantir que os seus vassalos mais jovens não desviassem a atenção do trabalho dentro de suas propriedades feudais, ou ainda, que se aventurassem desnecessariamente por caminhos obscuros e mortais que compreendia a derradeira verdade. E, o que geralmente acontecia com sucesso entre as crianças, ainda que por meio de um estado catatônico de conformidade a aflorar na adolescência.

Deste dia em diante João de Deus mudou. Passou a almejar mais do que tudo a paz e a liberdade pela qual Maria tanto buscou para os dois. E para isso, ele evitaria cometer qualquer falha que pusesse a sua vida em risco, porém, esforçar-se-ia ao máximo para abandonar aquela vida de amargas migalhas e dissabores para sempre.


Despedida de um Inferno

No término de sua adolescência, João conheceu ainda na fazenda do marquês um homem chamado Heitor Ulbier, este além de um exímio fornecedor e tratador de animais, tinha também um dom para reconhecer talentos natos, algo do qual ele falou as escondido no pé de seu ouvido. O caçador de animais costumava se dirigir a fazenda em um intervalo de quatro à seis meses para negociar as melhores montarias que dispunha com o milorde Zimmerman. De certa forma, aquele apreço oriundo daquele homem nutriu algum tipo de esperança no âmago de João de Deus.

Ilustração 07
Heitor Ulbier, O Caçador de Animais que
 libertou João de Deus dos muros de Zimmerman
 e o introduziu em uma vida de aventuras.
Ulbeir trabalhava com uma equipe de homens e semi-humanos que o acompanhavam em suas arriscadas aventuras. E, sempre que o Caçador de Animais estava na fazenda, João tratava de se aproximar para ver o que ele trazia de novo em sua bagagem, além da oportunidade de ouvir seus impressionantes relatos.

Luzmmonarca e Heitor Ulbier não se gostavam. De fato, o primeiro não gostava de ninguém, e, era mal reputado entre os empregados da fazenda de Zimmerman, por inúmeros crimes, sobretudo, abuso de violência, maus tratos, estupros e mortes. O algoz de João tratava o caçador como um fanfarrão, dissimulado, mentiroso e caloteiro, ainda que no fundo nutrisse por ele um desmedido sentimento de inveja. Embora houvesse esse desafeto, quem estava acima daquela rincha pessoal entre os dois se colocava a favor de Ulbier, que era o próprio Marquês, que embora conhecesse bem o mercador e a fama que o precedia, nunca viveu com ele nenhum atrito que o desabonasse.

A afinidade de Ulbier com João de Deus tomou tamanha proporção que o caçador em certa negociação com o marquês propôs a troca de alguns animais pela vida do jovem, Como milorde Zimmerman nunca foi alguém apegado a pessoas, exceto a sua amante Hilda Noir, não hesitou em aceitar o trato. Essa negociação aparentemente pacifica entre as partes tomou uma proporção dantesca ao chegar aos ouvidos do bastardo que conhecia o faro apurado de seu inimigo e também a habilidade de João, que era naquele lugar o mais habilidoso no tratamento dos animais. Sendo assim, Luzmmonarca tinha que tomar uma atitude antes que o dia amanhecesse e eles pudessem partir.

Naquele mesmo dia já pela madrugada, Luzmmonarca foi juntamente com mais dois dos seus comparsas até o cômodo onde ficavam alojados os homens da fazenda para sequestrar João de Deus. E, assim eles o fizeram, arrancando o jovem a força da cama a qual descansava, prendendo firmemente os seus braços e amordaçando a sua boca. João ficou sem entender o que se passava por algum tempo, enquanto ele era arrastado pelos braços, até que se deu conta de que aquele gesto violento de seus agressores estivesse vinculado a conversa que ele havia tido horas atrás no cair da noite com Ulbier, que na ocasião o questionou:

- Você está preparado para viver como um desbravador de aventuras, filhote?

E João de Deus bem se lembrava de que maneou a cabeça em afirmação a pergunta, consentindo com o desejo de ser aquilo que Ulbier pressentia ser o seu futuro longe daqueles muros. O Jovem com um sorriso trêmulo, em função do sentimento ambíguo de felicidade e temor ao horizonte de possibilidades que lhe afrontavam o pensamento lógico.

João sentiu quando o seu corpo foi arremessado sobre o lombo de um cavalo de qualquer jeito, e, antes que o cavaleiro pudesse montá-lo para partir em fuga, o pequeno grupo de sequestradores foi abordado por um outro bando de desconhecidos, que na penumbra da noite se limitavam a sombras e vozes abafadas por capuzes, cujo o que se falava não era muito bem compreendido. Não tardou para que um combate entre os captores de João e o outro grupo inicia-se, de maneira rápida e mortal.

Quando João de Deus se deu conta, sendo desvencilhado das cordas e mordaças que o prendiam por mãos alheias as suas, ele percebeu que o outro grupo que havia intervido a ação de Luzmmonarca não eram desconhecidos, e sim, eram parte dos homens que seguiam Ulbier em suas empreitadas. E, ali mesmo ficou sabendo de que aquela fatalidade somente aconteceria se o seu captor hesitasse lhe entregar, não por vontade de Ulbier, mas do próprio Marquês. João de Deus olhou para o que havia sobrado de seu algoz jazido no chão sem vida, e, se espantou com a profundidade dos cortes, que por muito pouco não o decapitaram.

Os restos de Luzmmonarca e de seus comparsas foram arremessados em um uma profunda trincheira encoberta por água próxima aos muros da propriedade do Marquês, que era conhecido por estar infestada de piranhas mortíferas e insaciáveis.